UMA
CABEÇA FALANTE.
Cecília parou o automóvel em frente ao
portão e acionou o controle remoto, pedindo a Deus para que seu marido
estivesse dormindo. Se ele percebesse que ela estava chegando tarde, não
haveria desculpa que o convencesse a ouvi-la. Seria cobrada, ofendida e teria
que ficar calada mais uma vez; era sempre assim, até ele se sentir satisfeito e
parar de atormentá-la. Cecília entrou na garagem e desligou o automóvel. Em
silêncio fechou a porta e acionou o alarme, seguia em frente com a certeza de que
Arnaldo ainda estaria acordado.
A mulher adentrou a sala e percebeu
que havia uma quietude estranha, nenhum som, apenas os passos dela no chão de
madeira podiam ser ouvidos no ambiente escuro. Acendeu a luz do abajur para
poder tomar ciência do que havia ali e ficou surpresa ao ver sua filha dormindo
no sofá. A mulher ansiosa seguiu para o quarto. O marido estava na cama
dormindo e nem se mexeu quando ela entrou. Cecília respirou aliviada, iria se
enfiar na cama e dormir rapidamente.
Mais uma vez o sono não vinha, estava
agitada demais para dormir e muito perturbada com os últimos acontecimentos.
Foi uma tarde de muita emoção e seus olhos estavam inchados de tanto chorar.
Retornara do enterro de seu pai, que havia falecido depois de um longo período
de internação no Hospital. Ele morreu de um câncer de fígado, estava na fila do
transplante, mas a morte o levou antes de chegar a sua vez. Cecília foi
visita-lo algumas vezes e sempre quando chegava, seu marido a ofendia dizendo
que ela fora atrás de homens para namorar. Ainda bem que sua filha conseguira
fazer o pai dormir antes que ela chegasse, porque não iria suportar mais uma
cena daquelas; estava muito triste. Fazia tempo que Cecília não ria pra valer,
sua vida tornara-se um tormento, desde que seu marido adoecera.
Quando Arnaldo e Cecília casaram-se
tinham a certeza de uma vida feliz, pois havia muito amor entre eles. O casal
tinha uma boa casa e um sítio de 20 alqueires de onde tiravam o sustento da
família. Plantavam cana de açúcar, criavam porcos, galinhas, patos e também
algumas vacas leiteiras. O caseiro fazia horta e cuidava do sítio; havia
fartura no local. Logo vieram os filhos, um casal; Cássio e Luiza e os quatro
viviam felizes, uma família perfeita.
No aniversário de dez anos de Cássio a
família toda se reuniu em um grande churrasco; o clima era de festa. Já estava escuro quando todos os convidados
saíram e Arnaldo sentou-se em uma cadeira, parecia desolado. Cecília perguntou
se ele estava passando mal e ele disse que estava sentindo muito cansaço e
parecia que suas pernas não obedeciam a sua vontade. A mulher o aconselhou a ir
deitar-se logo, pois aquilo poderia ser cansaço natural, ele trabalhara
bastante nos preparativos da festa. No dia seguinte, domingo de manhã, o homem
levantou-se cedo e andava arrastando as pernas; elas pareciam pesadas demais. O
dia foi passando e nada de Arnaldo sentir melhoras, pelo contrário, ele começou
a sentir formigamento nas pernas.
Cecília apreensiva prometeu
acompanha-lo ao médico na segunda feira. O médico pediu uma porção de exames
para depois fazer uma avaliação rigorosa da fraqueza e dormência nas pernas de
Arnaldo. Durante a semana foram a diversos locais para exames diferentes e cada
vez o homem reclamava mais de dores nas pernas. A situação estava se agravando,
ele passava a maior parte do tempo deitado na cama ou no sofá. Finalmente
depois de quinze dias e uma junta médica veio o diagnostico: esclerose
múltipla.
A partir dessa data a vida naquela casa mudou completamente. Cecília e
Arnaldo passaram a fazer uma busca incessante da cura da doença. No início os
sintomas são transitórios e Arnaldo conseguiu ficar bem durante o primeiro mês,
após o diagnóstico. Estavam animados e cheios de planos, mas durante uma
caminhada no sítio, o homem perdeu as forças das pernas e ficou sentado no
chão. Foi levado para a casa do sítio carregado pelo caseiro. Cecília foi
busca-lo e o médico achou melhor interna-lo para novos exames. Depois de alguns
dias, Arnaldo melhorou e voltou para casa mais animado; parecia estar bem; as
dores diminuíram.
O médico havia explicado à Cecília que os sintomas da doença no início,
vão e voltam independente do tratamento. As manifestações da doença são
remitente-recorrente e às vezes demora meses ou até anos para nova
manifestação. Porém, a situação de Arnaldo não era das mais fáceis, os sintomas
eram característicos e bastante graves. O homem sentia fraqueza nas pernas,
visão turva e descontrole urinário. Ele foi novamente internado e quando
recebeu alta parecia que a doença estava controlada, disse o médico. O casal
ficara esperanço, porém, foi pura ilusão.
Durante um ano inteiro e muitas idas e vindas aos Hospitais Arnaldo
percebeu que estava se tornando um inválido; mal conseguia parar em pé, tamanho
era o formigamento que sentia nas pernas fracas e bambas. Os três primeiros
anos se passaram com crises de média duração, mas no quarto ano, Arnaldo não
conseguia levantar as pernas, até que passou a se locomover em uma cadeira de
rodas; Cecília estava desolada e fazia tudo para aliviar o sofrimento do
marido, tomando conta dos negócios e dando assistência às suas necessidades. Os
filhos exigiam atenção da mãe que a essa altura da vida perdera as ilusões, seu
marido tinha um péssimo prognóstico e ela teria que ser forte.
Aos poucos ele foi ficando paralisado, permanecia muito tempo na cama, sua coluna estava comprometida; não andava mais na
cadeira de rodas. Os anos foram passando, as crianças crescendo e Cecília
lutava com os negócios e cuidava do marido que já não tinha nenhum movimento do
pescoço para baixo; seu marido ficara tetraplégico. Arnaldo, aquele moço bonito
com quem, um dia, ela se casara, agora era apenas uma cabeça falante. Com
lágrimas nos olhos ela virou-se para dormir, nada mais poderia fazer; o relógio
marcava meia-noite. Um texto de Eva Ibrahim.