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sábado, 22 de junho de 2013

"QUANDO VOCÊ SE FOR, A ÚNICA COISA QUE VAI DEIXAR É A LEMBRANÇA DO QUE FEZ AQUI". CHICO XAVIER--- AS VEZES É MELHOR NÃO SABER DE NADA... EVA IBRAHIM.

                                            AMANHÃ TALVEZ.

Tomei a decisão de ditar este texto para uma amiga quando percebi que andava esquecendo-me de coisas básicas, isto é, esqueci como dava marcha ré no meu antigo carro. Fiquei um longo tempo esperando o carro, que estava estacionado em frente ao meu, sair, para eu poder passar. Eu não conseguia dar ré no carro que dirijo há muito tempo. Meu marido riu porque o câmbio estava perfeito; depois comentou com os amigos e familiares. Todos riram muito, mas, acabaram percebendo que o caso era sério, minha mãe tivera o Mal de Alzheimer. Existia a possibilidade de eu ficar esquecida, igual a ela. Eu fizera apenas setenta anos, era forte e vaidosa; mal podia acreditar que estava perdendo a memoria.

Um dia, não muito distante, junto com meus guardados, gostaria que meus filhos encontrassem essa história e soubessem que retrata os meus últimos dias de lucidez. Reitero aqui a minha vontade de viver, incondicional, estar vivo é uma benção. Parto deste mundo real para o desconhecido somente pressionada por dona Morte. Agradeço á Deus á permissão por viver entre meus filhos e netos queridos. Uma Terra abençoada que nos deu tudo o que precisávamos e até os supérfluos; onde rimos e choramos de emoção.

Se por alguma razão eu ficar senil, a demência tomar conta de mim e eu me esquecer de quem sou, por favor, não me abandonem, eventualmente posso voltar a lembrar de mim. Gosto de ser chamada por meu nome de batismo ou por vovó, porque sinto que estou viva e fico mais feliz. Meu corpo está bastante velho, mas, o meu espírito é jovem. Como simples mortal estou adoentada e aos poucos sinto que estou perdendo o poder de raciocínio, mas, trago no peito a altivez de quem um dia foi uma mulher inteligente. Ainda percebo onde estou, porém, já há algum tempo, minha memória tem piorado a olhos vistos. Com a lucidez bastante comprometida só posso falar quando reconheço as pessoas e hoje estou bem, vamos em frente.

-Quero aqueles meus sapatos velhos de camurça, os pretos, que são confortáveis e elegantes, para os passeios ao ar livre e meu vestido de seda, rosa mosqueta, para ir ao médico. Se for para ficar em casa, gosto das minhas chinelas e aquelas roupas grandes e cheirosas; idosa precisa cheirar bem e estar sempre preparada para os abraços dos jovens. Gosto de muitas rendas e bordados em minhas roupas de cores pastéis. Nem pensar em roupas escuras ou de florezinhas pretas, só meu corpo está velho, pensem nisso. Por favor, não me ponham roupas de outras pessoas, me entristece e me deixa infeliz.

Já acordo ansiosa porque meu corpo amanhece rígido, tenho artrite, não consigo levantar-me sozinha. Sinto muita dor no joelho, tenho que dormir com um travesseiro entre as pernas; alivia um pouco. Tento não pensar que meu corpo necessita excretar os produtos tóxicos que circulam em meu sangue. Fico envergonhada, pois queria poder fazer minha higiene sem ajuda. As fraldas me incomodam; apertam minhas pernas, quase garroteando, para prender os poucos cheirosos nº 1 e nº 2, que todos fazem, mas, ninguém gosta de admitir. Quero lavar a boca e escovar os dentes com minhas próprias mãos; nem sempre posso fazer isso, meus dedos amanhecem rígidos. Passo dias sem voltar á razão, existem lacunas em minha mente.

O ser humano se acostuma com qualquer coisa e estou me acostumando a ser cuidada também. Meu corpo, que agora vive exposto, hora para um exame ora para higiene, já não me pertence porque não consigo cuidar dele. Procuro pensar em Deus e na minha alma para fortalecer o espírito, senão como irei resistir até o final? É difícil morrer quando se ama a vida. A energia persiste e para morrer temos que sofrer falência múltipla dos órgãos, que só acontece quando desistimos de lutar e eu não penso em desistir; ainda não. Quando estou “presente”, isto é, boa da cabeça, preciso contar as pessoas mais próximas casos antigos de acontecimentos importantes.

Gostaria de comer algumas coisas que nunca me dão; como por exemplo, um suculento torresminho de porco com arroz branco e couve com bacon. Com certeza alguma nutricionista que nunca ficou velha decidiu que alimentos para idosos ou doentes é, necessariamente, sopas sem sal.
 -Que horror! Por isso todos os doentes são pálidos e sem cor.
Temos que nos unir e protestar, queremos comida normal e lanches também; precisamos de “sustância”, como dizia minha avó.

 O tempo para mim já não importa, não sei as horas e nem sempre o dia da semana ou o mês, mas tenho vontade de sair para passear sob o Sol e caminhar junto á natureza. Quem sabe sentar no banco da praça em baixo do pé de Jatobá. Se cair um fruto em minha cabeça, juro que ficarei feliz mesmo assim.
Será que os pássaros ainda estão cantando sobre as árvores ou sumiram para as florestas? Se eu sair dessa situação, vou questionar para saber deles.

Receber visitas e carinho me faz lembrar que tenho família. Porém, muitas vezes não me recordo quantos filhos ou netos eu tenho; deve ser obra do Senhor Alzheimer que agora fica sempre ao meu lado. Fico feliz quando vejo meus familiares, eu os tenho em grande estima, é minha ligação com o mundo lá fora. Durmo muito, mas, não é de propósito, está fora de controle. Nem me reconheço; esquecer faz parte da minha rotina,
-Será que estou sendo dopada?
-Não sei dizer, mas pode ser para meu bem; não quero pensar nisso. Sinto que estou confinada em minha casa, não posso sair sozinha; temem que eu desapareça.

Sinto muitas dores e procuro sublimá-las, para não aborrecer meus familiares, porém, muitas vezes ficam insuportáveis e ai eu boto a boca no mundo. Faço coisas que não gosto, só para não contrariar as pessoas que cuidam de mim, como por exemplo: tomar chá.
Percebo que meus olhos estão secos e já não expressam mais emoção e os braços pesam toneladas, devo parecer um monstro; não quero me ver.
Agora, meu maior inimigo é o espelho, pois me lembro de quando tinha dezoito anos e sem modéstia, era linda. Se eu tratar alguns de vocês de maneira grosseira, por favor, me perdoem. Já existe um abismo entre eu e a vida, a lacuna da consciência; a morte me espreita...

Fecho os olhos e penso que estou arrastando minhas chinelas pela casa, apoiada em alguém, isso é certo, então percebo o óbvio; sou dependente até para andar. As peças mais importantes de minha casa agora são os batentes das portas, os corrimões e os espaldares das cadeiras ou qualquer coisa em que eu possa segurar. Meu maior sonho se resume em sentar em um vaso sanitário. Quero fazer minhas necessidades fisiológicas sozinha, no banheiro do meu quarto, naquele momento único de cada um. Estou revoltada, mas aceito que um dia devemos morrer e assim o meu dia também vai chegar.
Nos momentos de lucidez, sonho com dias melhores, mas, somente Deus sabe quando devo me apresentar á ele. O instinto de preservação é muito forte e nunca estamos prontos para partir. Morremos por falta de opção.
Que pena!
Posso não estar gostando das pessoas que estão cuidando de mim, porém, finjo que estou bem. Não me falta nada, mas tem algumas coisas que eu quero solicitar aos meus cuidadores como, por exemplo: paciência. Não me maltratem, pois só o corpo está acabado, a alma está presente e cheia de emoção.

Um grande beijo, vovó Tânia.
Não chorem, pois, morrer é a certeza da vida.
Essa história foi ouvida, durante oito meses, nos momentos de lucidez da protagonista, contou a amiga ouvinte.

Um texto de Eva Ibrahim.
MEU MUNDO REINVENTADO.

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