LÁBIOS DE CARMIM
A professora terminara de escrever a lição de português no quadro negro
e sentara-se com as mãos nos quadris, a dor naquele local era intensa. Há dias
vinha sentindo dor na região lombar, mas tinha medo de contar para alguém ou
até mesmo pensar no assunto. Estava em uma fase de negação, lembrar-se de seu
passado recente provocava náuseas e a tristeza tomava conta de seus
pensamentos.
--Será
que a doença, que a maltratara tanto, estava de volta?
Olivia não queria nem pensar em passar por todas aquelas provações
novamente, preferia morrer. Quando a sineta tocou anunciando o final do horário
de aulas, ela pegou sua bolsa e saiu rapidamente, queria chegar à sua casa e se
esconder do terrível câncer que a perseguia há cinco anos. Deitou-se na cama e
de olhos abertos fitava o teto e remoía tudo que havia acontecido no passado.
Era uma moça bonita e casara-se com Jonas, estava muito apaixonada,
cheia de sonhos e projetos. Conseguira o trabalho que gostava, era professora
primária. Quando compraram a casa com financiamento na Caixa Econômica Federal,
o casal ficou muito feliz, era mais um sonho realizado. Olivia sentia-se a
mulher mais sortuda do mundo, dizia à sua mãe e irmãs. Em meio a muito carinho
nasceu Tales, o primeiro filho e dois anos após, Luana; uma família feliz.
Quando a menina estava com três anos de idade, Olivia concluiu que era hora de
viajar com as crianças; filhos lindos e muito amados.
Cinco anos de casamento e muito amor entre eles, parecia que nada
poderia interferir na felicidade conquistada.
Em um final de semana prolongado a
família foi passear na praia; Tales e Luana foram conhecer o mar. Muita
diversão e longas caminhadas na orla marítima para recolher conchas; as
crianças estavam muito felizes. No domingo de manhã, Olivia acordou indisposta,
estava com dor em baixo ventre. Pensou em uma possível gravidez, pois, sua
menstruação estava atrasada; marcaria uma consulta com o ginecologista no dia
seguinte.
Jonas queria acompanha-la ao médico, mas não poderia faltar do trabalho
naquele dia e a sua esposa foi sozinha. Após alguns testes o médico disse que
não era gravidez, teriam que fazer alguns exames e uma ecografia para saber o
motivo da dor. A mulher voltou para casa apreensiva, disse que não havia
gostado da expressão que o médico fez ao lhe dizer que poderia ser uma porção
de coisas. Porém, era prematuro dizer sem ter certeza; deveriam aguardar os
exames.
O marido tentou acalmá-la, iriam juntos ao médico. Depois de uma semana
saiu o diagnóstico e o casal perdeu a tranquilidade. Olivia estava com câncer
de ovário e teria que submeter-se a uma cirurgia para a retirada dos órgãos
reprodutores. Uma cirurgia agressiva, seguida de quimioterapia. “Fariam todo o
possível para bloquear a doença”. O médico disse ao casal assustado.
Os cabelos de Olivia caíram, ela ficou
debilitada e durante um ano inteiro esteve afastada da Escola para tratamento.
Aos poucos retomou à sua vida normal, mas sempre voltando ao ambulatório para
exames de rotina. “Estava tudo bem”, disse o médico, poderia levar a vida
normalmente. Após três anos ela respirou aliviada, vencera a doença.
“Doce ilusão”, ela pensava enquanto as
lágrimas corriam pelo seu rosto deixando o líquido salgado molhar seus lábios. Tales
estava com dez e Luana com oito anos de idade, agora que o casal poderia sair
com as crianças, à doença estava de volta. Ela sabia que não poderia ser coisa
boa aquela dor que a atormentava já fazia alguns dias. Tratou de se levantar,
teria que fazer o jantar, as crianças chegariam da Escola e o marido logo em
seguida. Precisava ser forte, não queria assustar sua família. Iria procurar o
médico e somente depois diria ao marido a que conclusão o médico chegara.
A mulher se submeteu a novos exames e o médico lhe pediu que levasse o
marido com ela para saber o resultado, porque ela estava muito nervosa e
precisava de apoio. Com muita ansiedade o casal foi saber do resultado dos
exames e a noticia não poderia ser pior, o câncer estava de volta; metástase no
peritônio. A luta seria grande e teriam que iniciar imediatamente novas sessões
de quimioterapia. Jonas e Olivia passaram na Igreja em que se casaram e lá
ficaram ajoelhados pedindo proteção a Deus, porque dias terríveis seriam
vividos, eles sabiam que outra luta se iniciava naquele dia.
Foram muitas internações por fraqueza,
vômitos recorrentes e quando Olivia achava que estava melhorando, sua barriga
começou a crescer, era líquido ascítico. O médico disse ao marido que estavam
perdendo a luta contra o câncer, pois, a doença avançava sem piedade; não havia
mais esperança. O tratamento seria apenas paliativo, mas teria assistência até
o final.
No início do tratamento Olívia era
levada ao Hospital uma vez ao mês, depois a cada duas ou três semanas para
retirar o líquido que se acumulava em seu ventre. O líquido era retirado, cerca
de quatro ou cinco litros de cada vez e voltava para sua casa, sempre
acompanhada por uma de suas irmãs.
Durante alguns meses essa foi à rotina
da professora, já sem cabelos e muito debilitada parecia à sombra daquela
mulher bonita. Com o pescoço, pernas e braços finos o abdômen destoava, era
distendido e endurecido. Jonas queria saber o que fazer para melhorar a
situação de sua esposa, ela estava sofrendo muito. A resposta doeu, Olivia
estava na reta final, já não tinha mais água em seu ventre, o tumor havia
crescido e tomava conta do abdômen inteiro.
Em um dia chuvoso ela foi levada ao Hospital, não comia e só vomitava; chegou quase desfalecida. Estava muito mal, tinha os pés inchados e uma palidez intensa; era
difícil reconhecer a professora. Seu corpo estava emagrecido, não tinha nenhum fio
de cabelo e trazia o olhar perdido em algum ponto distante. A voz fraca,
difícil de ouvir; parecia que nada mais importava. Olivia permanecia inerte e
sua respiração era lenta e arfante. Foi reanimada com soro e depois de algum
tempo demonstrou uma pequena melhora, fixou seus olhinhos tristes em sua irmã e
disse bem baixinho:
-“Eu quero um sorvete vermelho”.
Sua irmã quis saber se poderia sair para
comprar o sorvete e todos aquiesceram, era o mínimo que poderiam lhe
proporcionar. Olivia foi colocada sentada na maca com apoios laterais e com um débil
sorriso começou a lamber o sorvete de groselha, que sua irmã segurava. A
fraqueza que dominava o corpo da professora deixava seus movimentos lentos e a
metade do sorvete derreteu dentro do copo que servia de apoio. Quando terminou
o sorvete havia um sorriso nos lábios vermelhos de Olivia, parecia satisfeita. Lábio
de carmim foi à imagem que ficou gravada na memória de todos que presenciaram o
fato. Como por ironia o sorvete pusera um pouco de vida nos lábios daquela
mulher tão fragilizada.
Depois
do sorvete Olivia teve alta, nada mais poderia ser feito, agora era com a
família, disse o médico consternado. A paciente foi levada com medicações para
dor e vômito deixando a imagem daquele sorvete vermelho. Todos se entreolharam,
sabiam que aquela fora a última vontade de mais uma vítima de um câncer muito
agressivo.
No Hospital não tiveram mais notícias
de Olivia, que certamente já se encontra além da vida com seus lábios de carmim.
Um texto de Eva Ibrahim
Um texto de Eva Ibrahim